A falta de advogados em Angola é generalizada e há cidadãos de algumas províncias que se deslocam a Luanda, onde 82 por cento da classe está concentrada e exerce actividade, para solicitar serviços, segundo um relatório da AJPD.
A situação, que é descrita como um dos obstáculos dos cidadãos no acesso à justiça, é analisada num relatório lançado em Luanda pela Associação Justiça, Paz e Democracia (AJPD), denominado “Angola: O Sector da Justiça, os Direitos Humanos e o Estado de Direito”.
O relatório realça que o número de advogados e advogados estagiários cresceu nos últimos dez anos e estão concentrados maioritariamente nas províncias de Luanda, capital de Angola, Benguela, Cabinda e Huíla, tendo passado de 618, em 2003, para 3.954, em 2016.
Durante a pesquisa, a AJPD constatou, em 2013, na província do Cuanza Sul, por exemplo, a inexistência de advogados suficientes para a prestação de serviços necessários para o sistema judicial.
Na altura, refere o relatório, existiam apenas dois advogados estagiários e dois com carteira profissional definitiva, dos quais apenas um exercia a profissão.
“Os demais advogados vêm de Luanda mediante solicitação de clientes”, indica o documento.
A pesquisa dá outros exemplos, como na província da Lunda Norte, onde, em 2013, existia somente um advogados e dez estagiários.
“Em Malange não existem advogados estagiários e só tem quatro advogados. No Cuando Cubango tem somente dois advogados e nenhum estagiário. No Cuanza Norte não tem advogados e tem só seis estagiários e, de igual modo, no Bengo não tem estagiários e tem dois advogados”, lê-se no relatório.
De acordo com os dados estatísticos, as províncias limítrofes de Luanda têm poucos advogados, recorrendo os cidadãos dessas regiões a profissionais da classe residentes em Luanda, mas os custos da viagem e a remuneração da intervenção nos processos são factores determinantes para a sua actuação na causa.
Na sua maioria, 99 por cento dos advogados estão concentrados em cinco províncias, só a capital do país concentra 3.222 do total de 3.954, seguindo-se Benguela (291), Huambo (139), Cabinda (130), Huíla (122), distribuindo-se os restantes 50 pelas outras 13 províncias que compõem o país.
O estudo constatou também que a maioria dos advogados demonstra mais interesse em processos cíveis, porque “garante somas avultadas em termos de remuneração, em detrimento dos processos penais”.
Numa análise sobre a independência da profissão no país, o relatório avança que os entrevistados, de maneira geral, afirmaram que “os advogados são livres para exercerem a sua actividade sem interferência, mas existem conflitos de interesse envolvendo advogados”.
“Por outro lado, há experiências de advogados serem pressionados ou impedidos de assistirem ao interrogatório por um instrutor processual”, refere o relatório.
O que diz o Governo
Recorde-se que no dia 28 de Novembro de 2016 o ministro da Justiça de Angola defendeu, em Luanda, a criação de defensores públicos para cobrir o défice de advogados e a sua má distribuição pelo país, já que mais de 800 profissionais estão concentrados na capital.
Rui Mangueira respondia a preocupações levantadas por deputados, na Assembleia Nacional, no âmbito das discussões na especialidade do Orçamento Geral do Estado para 2017. Segundo o ministro, na capital angolana operam mais de 800 advogados, enquanto que em Benguela, a segunda província com mais advogados, trabalham apenas 30.
“A distribuição de advogados no país é muito desequilibrada. Com o projecto de expansão da reforma da justiça e do direito, vamos, necessariamente, ter que ter defensores públicos e esses funcionários do Estado irão cobrir os espaços onde não existem advogados”, disse Rui Mangueira.
Contudo, o governante disse, citado pela agência noticiosa angolana, Angop, que a criação de defensores públicos obrigaria à admissão de novos funcionários, que ficariam adstritos ao Centro de Resolução de Litígios, mas “essa admissão não está, desde 2015, prevista na Lei do OGE”.
“Temos aqui uma dificuldade e vamos ter de atrasar um bocado esse processo”, frisou.
Faltam também magistrados
Noutra vertente da justiça, embora contígua, registe-se que 42 dois anos depois da independência, 15 anos após a chegada da paz, o número de magistrados do Ministério Público em Angola continua a ser insuficiente e faz com que os cidadãos em conflito com a lei em Angola sejam, continuem a ser, interrogados por polícias (em muitos casos impreparados) ou por outras autoridades aleatórias que determinam, sem critério objectivo e jurídico, a manutenção da sua prisão ou soltura.
A constatação é descrita no mesmo relatório da AJPD que revela que em 2003 existiam em Angola 173 procuradores, que actuavam em vários níveis, passando o número para 375, em 2016, contudo, a demanda processual actual ainda é maior. Esta evolução no recurso à justiça, mesmo sabendo-se que ela raramente funciona como deve, era previsível. Mas, como em tudo em Angola, o que é previsível torna-se imprevisível, tal é tese oficial de quanto pior… melhor. Sempre para os mesmos.
Apesar do aumento, “há falta de procuradores em todos os órgãos de polícia criminal, na direcção Nacional de Inspecção e Investigação de Actividades Económicas e nos seus órgãos provinciais e municipais, assim como nas esquadras de Polícia Nacional”.
O estudo refere também que, apesar dos progressos verificados, o Ministério Público continua ainda a enfrentar alguns desafios no que toca aos recursos financeiros, a relação com a polícia de investigação e a luta contra a corrupção.
De acordo com o relatório, a relação com a polícia de investigação melhorou nos últimos seis anos, mas em algumas províncias a relação de proximidade, aliada à falta de condições dignas de trabalho dos magistrados, dos investigadores e dos instrutores “ainda são um obstáculo à afirmação da independência e da eficiência do Ministério Público em relação aos polícias”.
“O que faz com que os magistrados não tenham capacidade de reacção contrária às violações à lei e aos direitos e liberdades praticadas pelos investigadores ou oficiais da polícia”, sublinha o documento.
Um decreto presidencial de 2014 passou para a tutela do Ministério do Interior ao invés do Ministério da Justiça e dos Direitos Humanos, o Serviço de Investigação Criminal, encarregue de proceder à investigação dos indícios criminais, adoptar meios de prevenção e repressão da criminalidade, efectuar detenções, revistas, buscas, apreensões e realizar a instrução preparatória dos processos-crime, recolher provas e formar corpo de delito.
O relatório argumenta que a instrução preparatória dos processos-crime deve ser feita sob direcção, condução e fiscalização da Procuradoria-Geral da República (Ministério Público).
Nas recomendações, o relatório alerta que o insuficiente número de magistrados judiciais e do Ministério Público não serve para invocar “permanentemente”, como razão, a morosidade processual, “pois onde há melhores condições de trabalho é possível haver mais decisões judiciais”.
Na visão da AJPD (uma organização que considera que o nível do respeito pelos Direitos Humanos é um indicador do estado de consolidação ou não do Estado de Direito Democrático e tem impacto no curso do desenvolvimento económico e social), a Justiça não acompanhou o plano de modernização, no que aos princípios e ao Estado de Direito Democrático diz respeito e, em consequência, “o modelo de organização policial continua militarista, autoritário e tendencialmente partidário, contrariando assim o artigo 210 da Constituição da República de Angola”
O gestor de programas da AJPD, António Ventura, considera que o combate à corrupção, que se manifesta através do tráfico de influência, suborno ou “gasosa”, continua a ser um dos grandes desafios que se colocam ao país dada a sua persistência e influência no funcionamento do sistema governativo.
António Ventura referiu que o relatório visa, sobretudo, contribuir para a efectivação da justiça, da paz e da democracia através das diversas formas de participação democrática, entre elas a promoção e defesa dos direitos humanos e concretamente no sector da justiça. O jurista angolano precisou que para a elaboração do relatório a sondagem se baseou em 100 entrevistas, sendo o público-alvo os advogados, oficiais de Justiça, magistrados judiciais e do Ministério Público, agentes dos Serviços Prisionais, políticos e também activistas de direitos humanos.
De acordo com António Ventura, os Serviços de Investigação Criminal (SIC) contam com grandes deficiências no que toca à falta de materiais, meios de transporte e operacionais para a investigação, recursos financeiros e humanos que permitam um trabalho de qualidade e celeridade na investigação dos crimes e com menos improvisação.
Acrescentou que o mesmo problema afecta alguns tribunais municipais e algumas procuradorias provinciais que funcionam em apartamentos arrendados sem salas dignas de um órgão de soberania, manifestando-se preocupado com a morosidade nos processos, a corrupção, a superlotação das cadeias, a falta de condições de trabalho e recursos humanos, falhas na reforma e as debilidades no sistema de informação existente no sector da justiça.
António Ventura disse ainda que ao longo da pesquisa notaram que o sistema judiciário apresenta melhorias em diversos aspectos mas que, ainda assim, não satisfazem a procura. De acordo com o relatório, 99% dos advogados estão centralizados em apenas cinco provinciais como Luanda, Benguela, Huíla, Cabinda e Huambo.
No documento a AJPD alerta para a necessidade de se prestar atenção à justiça tradicional, visto que não existem mecanismos de monitoramento para aferir se os seguimentos tomados pelos sobas e seculos estão ou não em conformidade com os padrões constitucionais e dos direitos humanos. António ventura referiu que no sistema prisional houve avanços no domínio da gestão das cadeias, mas que as estratégias de reeducação social dos reclusos não tem surtido efeito na recuperação da vida dos mesmos por causa das condições de habitabilidade e a não separação rígida da categoria dos presos ou detidos, o acesso à água potável e superlotação de algumas unidades penitenciárias.
Um notável avanço, segundo o documento, registou-se nos tribunais Notariais e de Contas e no que concerne à publicação do número e natureza dos acórdãos nos seus sites electrónicos, números de juízes e tipo de processos.
Quanto às questões de segurança pública, justiça criminal e direitos humanos, o relatório da AJPD reconhece que houve implementação do plano de modernização da polícia que teve os seus aspectos positivos no que toca ao rejuvenescimento da corporação com a formação e inserção de novos agentes. Mas o documento faz saber que, na visão da AJPD, a superestrutura não acompanhou o plano de modernização.
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